*Conto produzido para a temporada 2021 do Podcast Phármakon, do projeto Hupokhondría. Ouça no player abaixo.
Os dedos magrelos do menino de seis anos tentavam deslizar dentro da mão grande e firme da mãe para que o corpinho dele pudesse ganhar qualquer centímetro em direção à curiosidade dos olhos. Ele, parado ao lado dela na travessia de pedestres da avenida movimentada, aguardando o sinal fechar para os carros, se entretinha com uma ave pequenina, que também buscava atravessar a rua pelo chão a alguns metros de onde estavam, a partir da mesma calçada.
A trajetória ousada do animal causava tumulto entre os veículos. O bicho corria ligeiro pelo asfalto, se desviou da bicicleta do entregador, recuou assustado com o som de uma buzina e avançou em outra oportunidade. Uma caminhonete, para não passar por cima dele, quase atropelou um motociclista. Um caos só.
E o menino não desgrudava os olhos da ave.
– Mãe, olha ali aquele pombo maluco. Por que ele não voa?
– Cadê? – Perguntou a mulher tentando se orientar. Ao encontrar o motivo do tumulto e da curiosidade do filho, há cerca de uns dez passos à direita deles, rapidamente decifrou:
– Meu filho, aquilo não é um pombo. É uma galinha.
Os olhos do garoto brilharam. Afinal, amava galinha com arroz e batata palha, tudo separadinho no prato para que ele pudesse misturar dentro da boca. Gostava de sentir o “croc” da batata ao encontrar o macio da carne branca durante a mastigação. Também só jantava macarrão instantâneo sabor galinha.
– A gente pode comer ela, mãe?
– Que isso, menino? Tem que matar primeiro.
Àquela altura, a galinha já havia atravessado as duas pistas da avenida que iam para o mesmo sentido. Faltava vencer as outras duas. O animal descansava, ofegante, no canteiro central. Já se sabia que era uma garnisé, que havia fugido da loja agropecuária, e a imagem dela começava a circular na internet.
A mãe e o menino também estavam a meio caminho. A mulher tinha aproveitado o trânsito lento, provocado pela galinha na via, para atravessar com o filho as duas primeiras pistas.
O garoto, na faixa de pedestres, paralelo à galinha, mantinha os olhos nela. O pavor da ave com aquela saga era tão grande e deixava sua respiração tão forte, que ela toda se expandia e se contraía. E, focada que estava em preservar a própria vida, não viu um vira-lata vindo por trás, de focinho baixo pelo canteiro, devagarzinho. Chegou bem perto, sorrateiro, como já devia estar acostumado a agir com os pombos dos parques, e deu uma cheirada na cloaca dela.
Com o misto de susto e desespero, a galinha, que já não pensa, não pensou duas vezes e tentou fazer aquilo para que a natureza a iludiu dando-lhe asas: voou. Mas antes mesmo de completar meia parábola, seu corpo se encontrou de lado com o para-brisa de um caminhão. O veículo vinha em alta velocidade para conseguir passar pelo sinal, que acabara de ficar com a luz amarela. A garnisé foi lançada, passou por cima da travessia de pedestres, acompanhada pelos olhos atentos do menino e caiu moribunda na quarta pista vários metros à frente. Tão logo a ave se juntou ao chão, foi amassada pelas rodas de um carro.
O sinal fechou para os veículos. Mãe e filho terminaram de atravessar a avenida. Assim que chegou à outra calçada, o menino deu jeito de se soltar e saiu correndo em direção ao lugar em que a galinha havia caído. O corpo do garoto, pequeno e magro, não teve dificuldade de achar caminho entre os transeuntes. O da mulher, adulto, desesperado e com sacolas em uma das mãos penou com os obstáculos.
Depois de muito sufoco e empurra-empurra, a mãe encontrou o menino agachado próximo à massa do que havia sido a garnisé alguns segundos atrás. Correu até ele, se abaixou respeitosamente ao seu lado, passou a mão no cabelo dele e tentou convencê-lo a sair dali.
– Vamos, meu filho. Ela morreu.
O menino olhou para a mãe com alegria:
– Agora a gente pode comer ela?